Timoneiro

Artigo: Não, eu não quero privilégios

 

Após muitos meses de calor intenso, eis que surge então o frio. E mesmo que tenha chegado sem muito alarde, meio tímido para quem estava acostumado com uma páscoa já gelada, já fez mudar o cenário das ruas: as pessoas e suas vestimentas; o cinza no céu; um entardecer precoce. Foi neste entardecer de hoje, dia 26, noite em que escrevo estas palavras, que, ao ir ao mercado comprar algumas coisas para fazer o jantar, vi em uma esquina um homem sentado ao chão e coberto por uma manta, pedindo qualquer ajuda. Há sempre alguém por ali (na volta do mercado), pedindo. Muitas vezes, ignorados, muitas vezes sem sequer serem notados. Não por mim.

Segui e não pude evitar o pensamento de que ele iria, provavelmente, dormir na rua. Estava ali, só, e sentia, além de fome e sede, o frio. E isso cresceria, logo mais. Eu sabia disso, ele sabia, todos sabiam. Ademais, como se mensura a solidão? Fiz minhas compras e retornei. Preparei meu jantar e agora estou quente, sob o edredom. Ao meu lado, há vinho, que me aquece o corpo. Ouço música. Mais cedo, eu tomei um banho quente, vesti roupas limpas. Conversei sobre política. Tomei café. Falei ao telefone com minha família; sou uma pessoa amada.

E o homem aquele na esquina, o que significa? Um assunto para um artigo beirando ao sensacionalismo? Um artigo bonitinho que indicará, em mim, uma sensibilidade tão pouco vista “nos dias de hoje”? Vão perceber que sou especial, que me importo com os outros (a que ponto eu me importo?)… me renderá elogios pelas belas frases, e comentarão “como a vida é injusta mesmo”, antes de irem paras suas camas quentes fingindo que se incomodam de verdade com essa situação, que é a realidade de milhares de pessoas pelo mundo todo? Do resto não sei. A mim não rendeu surpresa o descontentamento por tamanha desigualdade, que eu vejo todos os dias da minha vida não-burguesa; de quem pega ônibus todos os dias, de quem muitas vezes conta as moedas para pegar o trem; de quem tem uma vida humilde. Nesta noite, me veio a absoluta e inquietante convicção de que eu não quero ter privilégios. Não quero passar na frente dos outros nas filas; não quero receber um salário que me sobre ao ponto que o do outro lhe falte; não quero sorrir enquanto o outro chora; e, definitivamente, não quero sucesso às custas da desgraça alheia.

Nota da autora: o dinheiro que nos aquece, que nos alimenta, que nos mostra o mundo, que nos protege, nunca chegará ‘aos pés’ do amor que alguém pode receber.

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